Doações eleitorais: da corrupção à concussão
Por: Ayrton Belarmino de Mendonça Moraes Teixeira
Questiona editorial do jornal Zero Hora1 se as doações eleitorais representam verdadeira doação ou são uma espécie de investimento. Na conclusão, o referido editorial alinha-se a movimento que pugna pela proibição de doações por pessoas jurídicas, almejando redução do impacto do poder econômico na política.
A doação por pessoas jurídicas a partidos políticos e de campanhas eleitorais é objeto de discussão na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 4.650, proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil2, em desfavor de artigos da Lei n. 9.096/1995 (Lei dos Partidos Políticos) e da Lei n. 9.504/1997 (Lei das Eleições). Não obstante o tema da constitucionalidade ou não da doação por pessoas jurídicas de direito privado refugir ao escopo temático ora proposto, julgamos relevante assinalar serem mais fortes os argumentos que defendem sua constitucionalidade. Vale mencionar, ainda, que o Congresso Nacional debate restrições às doações eleitorais, por meio da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n. 352/20133.
Em ambos os foros de debate, entendemos, a discussão é permeada por pré-conceitos e preconceitos que potencializam o processo de infantilização do cidadão, em franco aprofundamento, que se contrapõe ao discurso que vislumbra amadurecimento de nossa jovem (re)democracia.
Basta acompanhar a íntegra dos debates no STF4 para concluir-se que o fundo da discussão é flagrantemente político, e que – se adotada – a proibição não alcançará o resultado esperado. Evidenciando sinteticamente as duas asserções, frisa-se a clareza de visão não corporativista do Ministro Teori Zavascki, ao enunciar em seu voto vencido que:
Só por messianismo judicial inconsequente se poderia afirmar que declarando a inconstitucionalidade da norma que autoriza doações por pessoas jurídicas e assim retornar ao regime anterior se caminhará para a eliminação da indevida interferência do poder econômico nos pleitos eleitorais. É ilusão imaginar que isso possa ocorrer.5
Somos a concreção do Estado Bacharelocrático de Direito6, no qual a comunidade jurídica é a principal promotora do patrimonialismo vitaminado pela teoria e prática do estado de bem-estar social.
O Brasil, historicamente, pode ser tido como possuidor de séries das mais avançadas legislações do mundo, não obstante sofríveis exceções7. Dentre os grandes feitos, está a Lei Complementar n. 95/1998, que – em cumprimento ao art. 59 da Constituição Federal – dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis. Assim, podemos frisar a boa qualidade técnica, em geral, de nossa legislação e – eis que o ser humano é fonte e, conforme Protágoras, medida de todas as coisas – da de nossa classe jurídica. Mesmo em períodos de exceção, nossas Cartas Políticas e a legislação infraconstitucional em geral ostentavam inegável apuro técnico-jurídico e, apesar de ter o direito positivo como farol de civilidade e civismo (e, talvez, por nele exagerar as apostas), o País que possui “mais cursos de Direito do que todos os países do mundo juntos”8 não alcançou o mesmo grau de desenvolvimento institucional e econômico de outros com produções normativas de menor ou idêntico apuro técnico e quantitativamente menos pródigas9.
Nosso subdesenvolvimento encontra como uma de suas bases – além do reflexo condicionado de colocar-se a culpa no alterum (o inferno são os outros), sejam adversários políticos ou outros países, – a crença de que bastam vontade política e norma jurídica para se criar riquezas, como se o direito tudo pudesse. Ora, se as normas são necessárias exatamente como instrumento para coibir o descumprimento das condutas estipuladas como socialmente valiosas, há um limite fundamental, qual seja, o da possibilidade. Daí falar-se, por exemplo, em sede de efetivação dos direitos sociais, em “reserva do possível”.
O tema da tensão entre o direito positivo e o mundo fático, entretanto, não encontra origem na Ciência do Direito Constitucional, no movimento do constitucionalismo ou no reconhecimento dos direitos fundamentais de segunda dimensão. É tema bem mais antigo, afeto já à Filosofia do Direito e à Teoria Geral do Direito. Giorgio Del Vecchio já ensinava que, por mais singular que isso possa parecer, o direito é essencialmente violável e existe em virtude de sua violabilidade. Com efeito, o direito positivo possui um caráter instrumental de regulação de condutas, haja vista que objetiva conferir um determinismo artificial, que deve se impor, na medida do possível, ao determinismo natural10. E, efetivamente, norma cujo consequente, ou prescritor, seja impossível cumprir afronta o princípio da razoabilidade, na sua feição de normatização do possível. Nesse sentido, a observação de Paulo de Barros Carvalho ao asseverar – significando que o direito não regula nem ações que ocorrem invariavelmente nem impraticáveis – que “o Direito só opera no campo do possível”11. Como assinala, com esteio em Hans Kelsen e Lourival Vilanova, Gabriel Ivo: será um sem-sentido deôntico o direito prescrever aquilo que for factualmente impossível ou factualmente necessário12.
Porém, o Brasil, incansável e esperançosamente, vive na crença de que o direito tudo pode. O “fiat justitia, pereat mundus” transmuda-se em: faça-se a Justiça, ainda que apartada do mundo (exceto pelo suporte físico do papel e pela tinta dos diários oficiais).
Estabelecendo-se a intentada proibição de doações eleitorais por pessoas jurídicas, dar-se-á azo – nenhum ineditismo, logo, nenhuma surpresa – a mais Estado; mais atividade estatal de fiscalização será necessária, com sua inafastável necessidade de custeio. Mais relevante: as causas que levam empresas a realizar doações eleitorais milionárias persistirão e, pior, agravar-se-ão, pois será necessário que os Donos do Poder aumentem o estímulo para que as doações – então ilegais – sejam efetuadas. Restabelecer-se-á convite enviesado ao “caixa-dois”13, pomposamente denominado de “recursos não contabilizados” por Delúbio Soares14 e qualificado como “o que é feito no Brasil sistematicamente” por uma das maiores referências políticas do País, Luís Inácio Lula da Silva15, apesar da intrigante opinião contrária do atual Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ministro Dias Toffoli16.
De nada adianta adotar uma medida, quando não se consegue identificar o problema de fundo. O resultado dificilmente é o esperado, quando se combate o sintoma, ignorando-se a causa. Ora, é preciso compreender, prévia e adequadamente, o que impele empresas privadas a realizarem vultosas doações, algumas a todos os partidos de mais expressão, qual seja: o poder de vida e morte em relação aos atores econômicos concentrado nas mãos de agentes públicos, membros de poder ou não, eleitos ou não. Vejamos.
Com o fenômeno do século XX de recrudescimento do poder estatal, mesmo o grande empresário está em posição de vulnerabilidade. Isso porque o modelo de ordem econômica adotado pela Constituição Federal – a partir da atuação dos constituintes-políticos e constituintes-juristas, e reforçado pela atuação dos poderes instituídos, nisso incluído o Judiciário – demonstra por quem aprecia republicanismo e democracia desconhecimento ou olvido do escólio de Lorde John Emerich Edward Dalberg-Acton (1834-1902), no sentido de que “o poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente”. Já quem conhece ou intui tal verdade da condição humana, utiliza-se da figura do “inimigo comum” para prevalecer na luta por poder. Efetivamente, adota a maioria dos agentes públicos – novamente, membros de poder ou não, eleitos ou não – uma mentalidade perigosamente temerosa e/ou belicosa relativamente ao poder econômico e exageradamente promotora do poder político. Discurso do medo alardeado em volume tal que convence a sociedade da necessidade de se manter um cabresto sobre a economia, que seria análoga a um animal selvagem.
A grita aceita sem muita oposição serve, sem mínima percepção por parte de nossa sociedade, a outro desígnio: concretizar a concentração de poder, que – nas palavras de Henry Kissinger (1923-) – é o supremo afrodisíaco. Cria-se, aí sim, verdadeira besta-fera, à qual tanto foi originariamente conferida prerrogativa para muito (talvez demasiado) na Constituição quanto os poderes constituídos vêm concedendo atribuições outras além das expressamente previstas na Carta, num fenômeno que só aumenta o grau de intervenção, a níveis suficientes para dobrar inclusive grandes corporações. É, dessa forma, o poder econômico cooptado ou sequestrado pelo poder estatal, por atos de agentes eleitos ou não, com o intuito de evitar que o primeiro venha a não seguir estritamente aquilo e tão somente aquilo que o poder público alega ser concretizador do “bem comum”.
Assim é que se pode afirmar que, nos casos das doações superlativas ultrapassou-se a barreira do mero afago ao Príncipe e, já no plano criminal, da esfera de corrupção ativa e corrupção passiva: tangencia-se – se não restar invadido – o âmbito do crime de concussão. Com efeito, o controle exacerbado da economia é gerador de dois resultados negativos: quando menos, o alinhamento não republicano entre poder político e poder econômico, chegando-se, até, à corrupção ativa e à passiva; e, num estágio de mais exacerbado intervencionismo, a escravização do poder econômico pelo poder político, configurando-se a concussão.
Como diminuir o peso do poder econômico nas eleições? Reduzindo-se o poder do Estado na economia. Quais seriam os modos de se atingir tal intento? Estabelecendo-se uma carga tributária civilizada, diversa da atual, que, escorchante, drena quase todos os recursos do setor privado – nisso consideradas as pessoas naturais e as jurídicas – para o setor público, que determina quem, como e quando os receberá de volta (seja em direitos sociais ou em subvenções); abandonando-se o cacoete, que data do Brasil Colônia, de que a economia seja ditada pelo Estado, então pela total proibição da indústria, e, atualmente, pela concorrência e iniciativa em regime semi-aberto, haja vista a competição de empresas estatais com empresas privadas – tanto na área de serviços quanto na de atividades econômicas; diminuindo-se a burocracia a patamares não kafkianos; reduzindo-se o intervencionismo do Estado nas obras de infraestrutura, ao querer, inclusive, estipular “lucro justo”; afastando-se o caráter de oligopólio ou, até, monopólio conferido pelo Estado aos concessionários e permissionários de serviços públicos e, em alguns casos, com vitaliciedade ou, até, hereditariedade17; abandonando-se o modelo do nacional-desenvolvimentismo, não menos desastroso agora – no segundo governo Lula e no primeiro governo Dilma – do que fora no segundo estágio econômico do governo militar.
Porém, sob a alegação de se precaver das falhas de mercado, em prol do “bem comum” e a pretexto de proteger o consumidor, o Estado – ao regular, intervir e atuar excessivamente na economia – nela inocula abundantemente a peçonha das falhas do setor público: o centralismo, o dirigismo e o oficialismo18, a manutenção de postos de emprego à custa de diminuição da produtividade e, consequentemente, aumento do custo dos bens de produção e de consumo, em face das barreiras às importações, que atingem mais agudamente o trabalhador, que é, lembremos, o consumidor que mais seria beneficiado com queda real de preços; a crença de que um burocrata pode prever o comportamento de uma economia, desonerando setores eleitos e subsidiando (BNDES) “campeões nacionais”, mediante invariavelmente descalibrados poderes divinatórios, sob a roupagem de um falso cientificismo regado a populismo e ideologia a que os fatos econômicos – esses “reacionários” – teimam não obedecer.
Se não se atenta às lições de Lorde Acton e de Kissinger, propõe-se reflexão a partir de elemento de obra ficcional que possui ampla aplicabilidade à realidade, qual seja, o que decorre de enunciado de Francis “Frank” J. Underwood, personagem interpretada por Kevin Spacey no seriado House of Cards:
Dinheiro é a McMansão em Sarasota, que começa a desmoronar após dez anos. Poder é o velho edifício de pedra, que se mantém por séculos. Eu não posso respeitar alguém que não vê a diferença.
Os políticos de Pindorama também não demonstram muito respeito pelo cidadão/consumidor, que aplaude a cooptação ou o sequestro dos agentes econômicos pelo poder político, pagando – a pretexto de ser salvo do poder econômico – a conta por meio de tributos e preços mais elevados do que permitem a inovação e a produção em larga escala numa economia menos refém do patrimonialismo, do protecionismo, do capitalismo de estado ou de compadrio (de laços).
Quando o diagnóstico é equivocado, o remédio pode ser inócuo – manobra diversionista ou mero placebo – ou, pior, administração adicional do próprio veneno. Se nem a proibição das doações, já anteriormente havida, e nem a legalização adotada após considerações do Congresso Nacional na CPI do PC Farias foram medidas eficazes para diminuir (um excesso) de influência econômica nas eleições, que tal indagar se a causa não é o estado de bem estar social conjugado com a herança patrimonialista, que nos leva à livre iniciativa e à livre concorrência em regime semi-aberto: mesmo quando há privatização, não há desestatização; quando muito transmuda-se monopólio estatal em oligopólio, prestando-se as agências reguladoras a assegurar reserva de mercado.
A maior alavanca do processo de evolução ética nos campos normativo, institucional e da facticidade social será a diminuição do gigantismo estatal.
Assim, é que se conclui que, para diminuir a influência do poder econômico em eleições, é imperativo diminuir o poder do Estado na economia. No que concerne à matéria em comento, o resto é silêncio!
NOTAS
1 Doação ou investimento? Zero Hora, 26 ago. 2014. Disponível em: <http://wp.clicrbs.com.br/opiniaozh/2014/08/08/editorial-doacao-ou-investimento/?topo=13,1,1,,,13>. Acesso em: 3 set. 2014.
2 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=1432694&tipo=TP&descricao=ADI%2F4650>. Acesso em: 11 set. 2014.
3 Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1177596&filename=Avulso+-PEC+352/2013>. Acesso em: 11 set. 2014.
4 Disponível em: <http://www.oab.org.br/noticia/26469/esclarecimento-da-oab-federal-sobre-a-adi-4-650>. Acesso em: 11 set. 2014.
5 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=1432694&tipo=TP&descricao=ADI%2F4650>. Acesso em: 11 set. 2014.
6 Ou Estado Demagógico dos Bacharéis de Direito.
7 Disponível em: <http://ba.portaldatransparencia.com.br/prefeitura/apora/iframe.cfm?pagina=abreDocumento&arquivo=35EB01518847>. Acesso em: 15 set. 2014.
8 Disponível em: <http://genjuridico.com/2014/09/02/brasil-tem-mais-cursos-de-direito-do-que-todos-os-paises-do-mundo-juntos/>. Acesso em: 15 set. 2014.
9 Serve para comprovar a prodigalidade na produção normativa a seguinte matéria, disponível em: <http://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/2014/03/em-protesto-complexidade-de-leis-advogado-lanca-livro-de-75-toneladas.html>. Acesso em: 3 fev. 2015.
10 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1963. p. 69 e segs.
11 Apud Roque Antonio Carrazza. Curso de Direito Constitucional Tributário. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 71.
12 IVO, Gabriel. Norma jurídica: produção e controle. São Paulo: Noeses, 2006. p. 131.
13 Conforme se infere de: <http://www.conjur.com.br/2014-abr-02/comissao-senado-aprova-fim-doacoes-empresas-partidos>. Acesso em: 24 mar. 2015.
14 Disponível em: <http://jornalnacional.globo.com/Telejornais/JN/0,,MUL561400-10406,00-EXCLUSIVO+DELUBIO+SOARES+QUEBRA+SILENCIO.html>. Acesso em: 13 out. 2014.
15 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u73772.shtml>. Acesso em: 13 out. 2014.
16 Disponível em: <http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/eleicoes-2014/noticia/2014/09/essa-historia-de-caixa-dois-nao-existe-no-brasil-diz-o-presidente-do-tse-4608305.html>. Acesso em: 13 out. 2014.
17 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/133101-dilma-sanciona-lei-que-torna-hereditaria-licenca-para-taxis.shtml> Acesso em: 15 set. 2014.
18 BARROSO, Luís Roberto. Estado e livre iniciativa na experiência constitucional brasileira. Migalhas. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI199284,71043-Estado+e+livre+iniciativa+na+experiencia+constitucional+brasileira> Acesso em: 8 maio 2014.
Analista Judiciário - Área Judiciária do TRE/SC; ex-advogado em Porto Alegre/RS; especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET); bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; ex-professor seminarista do Curso de Especialização em Direito Tributário do IBET/SC.
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